quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Uma palavra amiga...

"Certo dia, na outrora próspera República do Pantanistão, os juristas, fartos das clássicas piadas fáceis, críticas e até invejas do comum dos mortais, decidiram entrar em greve. A adesão foi massiva. Praticamente todos os advogados, juízes, consultores, notários, solicitadores, conservadores dos registos, chefes de finanças, diplomatas, jurisconsultos pousaram as canetas, fecharam os códigos numa simultânea explosão de poeira e post-its, e relaxaram. “Eles que se amanhem sem nós”, disseram. Levaram consigo as suas secretárias, sem as quais são incapazes de fazer seja o que for. E as máquinas de café a que conseguiram deitar a mão. Eis o que aconteceu:

DIA 1
- O povo festejou a liberdade nas ruas, queimaram-se bonecos de palha vestidos de toga. Uma nova sociedade nasceria, dizia-se.
- Durante as comemorações bebeu-se muito, deram-se tumultos. Algumas pessoas foram assaltadas, umas poucas ficaram feridas.
- As vítimas dos tumultos dirigiram-se à polícia para fazer queixa, mas como não havia procuradores do Ministério Público nem juízes de instrução, a polícia saiu à rua de qualquer maneira, distribuindo tiros e bastonadas para repor a ordem, prendendo culpados e inocentes, arrancando cidadãos da cama a altas horas da noite para revistar tudo e levá-los para a esquadra.
- Como não havia advogados a defender os arguidos detidos, a polícia extraía confissões arrancando unhas com alicates e com intermináveis sessões de pancada.

DIA 2
- As leis do Parlamento e os decretos-lei do Governo tornavam-se cada vez mais ambíguas e contraditórias umas com as outras. A assessoria jurídica destes órgão havia aderido em massa à greve. Por todo o lado surgiam litígios privados em torno da interpretação das leis e dos contratos, que eram redigidos agora por não-juristas. Os lesados acorreram em massa aos tribunais para propor acções, mas à porta viam um letreiro: “fechado por motivo de greve”.
- Um grupo de grandes empresas impuseram aos trabalhadores a conversão dos respectivos contratos de trabalho em contratos de “prestação voluntária de serviços”, sem salário, em que a empresa apenas tinha o dever de lhes pagar o passe social. Os trabalhadores protestaram que isso era escravatura, mas tudo era legal: decorria da nova lei criada no dia 1, destinada aos colaboradores de ONGs. Não tinham quem argumentasse juridicamente em sua defesa e os livros de direito haviam sido queimados numa monumental fogueira.

DIA 3
- Uma junta de sociólogos, decididos a repor a ordem, ocupam os lugares que anteriormente eram dos juízes nos tribunais. Mas não julgam segundo a lei, ou o costume ou a jurisprudência ou doutrina: não! Acreditam numa justiça “socialmente consciente”. Assassinos em série, membros de gangs, violadores e outros trafulhas são libertados em massa, por serem considerados “vítimas incompreendidas de uma sociedade elitista incapaz de acomodar mundividências díspares que a tornam mais rica e plural”.
- Ao saber disto, Vale a Azevedo muda-se para o Pantanistão e diz que nunca foi tão feliz, finalmente encontrou um país civilizado.

DIA 4
- Os hospitais e consultórios médicos estão fechados e as pessoas morrem doentes na rua. Na verdade, os médicos fartaram-se de tantos processos por negligência médica, aos quais aos juízes-sociólogos davam provimento com fundamentos do género «Segundo a Queixosa, o Dr. X, passa-se a citar, “nem olhou para mim, foi receitar o xarope e ala!”, o que evidencia grave falta de consciência social e, acima de tudo, um feitio execrável, pelo que se condena ao pagamento duma indemnização no valor de 2 milhões…». Os médicos juntam-se aos advogados, que relaxam na praia, mas rapidamente escolhem outra praia, porque também não se conseguem aturar uns aos outros.
- Na rua é o caos. Não há notários, pelo que os contratos importantes são assinados com sangue e o seu incumprimento vingado… com mais sangue!

DIA 5
- Aparece um tipo barbudo que anda por aí a curar os cegos e os coxos, caminha sobre as águas e diz que é o messias. A junta de sociólogos, “receosos que as suas acções subversivas ofendam qualquer minoria étnica ou religiosa, assim como aqueles que optam por não seguir o trilho redutor da religiosidade organizada” condenam-no a ser pregado numa cruz. MAS NÃO HÁ CRUZES! As empresas madeireiras há muito que fecharam, incendiadas pelos “prestadores voluntários de serviços” (contencioso laboral sumaríssimo) e as florestas haviam sido dizimadas, pois não havia quem propusesse acções populares contra a sua destruição.
- A junta de sociólogos é massacrada por um gangue de “incompreendidos da sociedade” que, posteriormente, lhes esvaziam os bolsos e violam os cadáveres. Tomam o poder. Segue-se outro golpe, desta vez dos militares. E outro, de mestres pasteleiros (não me perguntem porquê).

DIA 6
- O poder gira de mão em mão todos os dias. A sociedade está parada. Não se come, não se produz. Não há transportes, não há comunicações, não há nada. Os chimpanzés do zoo espantam-se com os modos primitivos dos homens e um deles expõe a sua teoria de que o homo sapiens sapiens é, na verdade, o antepassado do chimpanzé, que depois teria evoluído num sentido mais peludo e civilizado.

DIA 7
- No meio do caos, uma criança grita: “Parem, suas bestas! É isto o vosso mundo livre, sem juristas? Justiça é viver honestamente, não prejudicar ninguém, dar a cada um aquilo a que tem direito! (*)”.
- A multidão parou. Olharam todos uns para os outros e pensaram um pouco. Acharam aqueles três princípios bons. Em breve, começariam a reconstruir aquilo que haviam destruido. Deixaram voltar os juizes, para assegurar que cada um recebia aquilo a que tinha direito, os notários e conservadores para evitar fraudes nos negócios, os jurisconsultos para pensarem novas formas de fazer mais e melhor justiça, os consultores, solicitadores, chefes de finanças, diplomatas… Os advogados ainda conseguiram negociar mais duas semanas de férias na praia onde se refugiaram, mas até eles voltaram. Para bem de todos.

(*) «Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere alterum non laedere, suum cuique tribuere.» (Ulpianus, jurista romano, 150-228 d.C.)

Agora que sabem como tudo se passou na República do Pantanistão, vão até ao jurista mais próximo que encontrarem no vosso trabalho e agradeçam-lhe pelo que faz, dêem-lhe uma palavra amiga, façam-lhe uma massagem nos ombros… E se porventura o encontrarem a trabalhar, aí têm outra razão pela qual nós dominamos o mundo: não perdemos tempo a ler histórias ridículas ..."

AUTOR DESCONHECIDO

1 comentário:

  1. Olá bom dia, Sou licenciado em Solicitadoria e tenho um sitio na internet, www.ruipinho.eu, onde se disponibiliza apontamentos, trabalhos, exames, legislação da área de Direito, em particular os conteúdos da Licenciatura em Solicitadoria. Gostei bastante do texto "Uma palavra amiga..." e gostaria se o poderia publicar na minha página. Parabéns pelo texto, está muito bom mesmo. Cumprimentos Rui Pinho

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