"Como é que se escreve a felicidade? Como é que digo sobre as minhas pernas enrodilhadas nas tuas, os meus dedos agentes inflitrados nos teus cabelos, a tua língua a pintar-me a boca a traços grossos? Para quê?, partilhar aqui que a minha pele se ri ao teu toque quente, como se estivesses sempre com febre, sentes-te bem? Quem quer saber?, do meu corpo armadilhado nos teus braços e dos meus olhos, que rebolam pelo quarto sem saberem para que parede devo atirar e deixar explodir o gozo, que não me cabe mais cá dentro. Como é que descrevo?, a impossibilidade teórica desta prática feroz de aprendizes, e as probabilidades disto tudo, que eram de um milhão para um, e que constavam do meu mapa astral, feito por uma colega de trabalho, da página dos signos na revista cor-de-rosa, que me aconselhava a ficar em casa, ou das previsões da dona são, a empregada doméstica que das duas às seis me agoirava o futuro, olhando de soslaio as minhas olheiras pisadas e achando, coitada, que eu já não tinha remédio. Como é que transmito?, que me apetece recato e cama, mãos agarradas e vozes baixas, por favor não me apertes tanto!, que a verdade é raquidiana e não apenas um acessório, e que escrevo melhor quando dói, desculpem-me a pobreza da sintaxe e a vontade de me ir embora, mas não posso fazer nada. Sim, como explicar?, que foste sorte, acaso, tiro às cegas, pim pam pum, a álea da vida em todo o seu esplendor, a desdenhar das incompatibilidades cósmicas, dos conselhos de dinheiro, amor e saúde (...), das minhas olheiras mastigadas e do agoiro triste da Dona São, que sabia tanto da vida mas nada do amor, a não ser do amor pelos filhos e por isso das duas às seis, a passar a roupa e a olhar-me com pena, as pernas negras garroteadas e as tonturas da diabetes. Como explicar?, que as coisas são simples, afinal, e que a dor não passa de um caminho de sentido obrigatório que não dá para atalhar, até um dia chegarmos a quem nos espera desde sempre?"
in http://umamoratrevido.blogspot.com/
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